PDF Embates e negociações produção e consumo cultural na cena Mangue. Amilcar Bezerra.

Embates e negociações: produção e consumo cultural na cena Mangue.


A emergência da Cooperativa Cultural Mangue no cenário recifense dos anos 90 desencadeia, não apenas a construção de novas representações a respeito da identidade local, mas também corporifica novas maneiras de se articular produção, distribuição e consumo de bens culturais. Por vezes rotulada de "Movimento Mangue" ou "Manguebeat", esta mobilização de artistas e intelectuais cria as condições para a desconstrução de representações estereotipadas sobre o Recife através da arte, ao mesmo tempo em que formula novas expressões artísticas locais incrementadas com referências globais. Nesse artigo, preferimos utilizar o termo "Cooperativa Cultural Mangue" para designar essa mobilização porque é desta forma que alguns de seus principais articuladores, Renato L e Fred 04, a intitulam, contrapondo-se aos rótulos construídos, sobretudo pela imprensa, que tentam fechar o conceito "Mangue" numa proposta estética delimitada, restrita à fusão de ritmos populares tradicionais locais com elementos da música pop contemporânea. Acreditamos que essa denominação traduz um modo específico de produzir, divulgar e distribuir bens culturais que se aproxima de estratégias vigentes no cenário cultural do Recife desde meados dos anos 1980, quando já havia uma cena alternativa ligada ao metal e ao punk construída por meio de práticas underground de produção e divulgação. Vários músicos e articuladores do Mangue dialogavam com essa cena alternativa e integravam bandas desses gêneros. Os caminhos para um circuito underground na cidade já haviam sido, portanto, desbravados; os mangueboys não apenas dialogaram com essas práticas como as deslocaram a outro patamar, procurando legitimá-las nacionalmente.


Situada nesta época numa posição marginal em relação aos grandes pólos de produção de bens culturais no Brasil, a cidade do Recife, ao mesmo tempo em que estava inserida nos fluxos simbólicos de alcance nacional e em certa medida global, não se mostrava, contudo, terreno propício para viabilizar mercadologicamente uma produção artística local. A incipiência do mercado local de produção de bens culturais teve como um de seus efeitos aglutinar diferentes segmentos do público underground em eventos comuns. Assim, festivais e shows alternativos reuniam artistas de diversos gêneros musicais como o punk, hardcore, metal, hip-hop, reggae e grupos mais conectados a sonoridades típicas da terra, como Mestre Ambrósio ou Cascabulho. Desde os anos 1980, os agentes da cena musical underground recifense se utilizavam desta estratégia para viabilizar financeiramente eventos que de outra forma teriam público demasiadamente reduzido. Assim, aquilo que poderia ser considerado uma desvantagem para o cenário cultural local acabou criando um ambiente propício à produção e ao consumo das misturas musicais elaboradas pela Cooperativa Cultural Mangue.


O establishment Armorial.


Até a eclosão do Mangue, as manifestações artísticas tidas publicamente como representativas da identidade local estavam filiadas a uma estética consolidada nos anos 1970 pelo Movimento Armorial, organizado e liderado pelo escritor e gestor público Ariano Suassuna. O ideário do movimento consistia na construção de uma arte pretensamente nacional que privilegiasse, como matéria-prima simbólica, certas manifestações culturais do meio rural nordestino, especificamente em seus traços estéticos mais aparentados com o barroco e o medievo ibéricos.


Desde sua criação, o Movimento Armorial contou com os auspícios do poder público, que financiava parte significativa de sua produção. Para isso, muito contribuiu a participação de Suassuna em cargos públicos de gestão cultural desde fins dos anos 1960. Como havia no ideário do movimento uma clara distinção entre arte e mercado, a viabilidade econômica da produção artística ou mesmo a visão da arte como bem cultural de consumo não era uma questão para seus integrantes. Os constantes financiamentos públicos tornavam possível uma significativa produção artística local independente das demandas mercadológicas. Esses recursos eram predominantemente destinados àqueles artistas que compartilhassem dos princípios estéticos armoriais. Em virtude disso, vários segmentos da produção artística local não seriam contemplados por essa política. Para Ariano Suassuna, o artista brasileiro teria por missão inspirar-se nas culturas populares rurais para delas extrair a matéria prima de uma pretensa arte erudita nacional. Esse ideal tem alguns pontos comuns com a estética modernista de Mário de Andrade e com a visão de identidade nacional articulada por Gilberto Freyre desde a década de 1920 .


A Cooperativa Cultural Mangue surge então na década de 1990, numa conjuntura em que as representações hegemônicas de identidade cultural local eram, ora modelos estereotipados formulados pela mídia de alcance nacional sediada no eixo Rio-São Paulo, ora imagens materializadas pela produção artística do Movimento Armorial. Em nenhum dos dois casos a identidade cultural local representada agregava elementos mais especificamente urbanos e, menos ainda, buscava incorporar as transformações trazidas pelo processo de globalização que, sobretudo a partir dos anos 1990, implanta-se no Brasil e passa a ser objeto de intenso debate. A região nordeste era tipicamente retratada como um todo homogêneo ligado à imagem da seca no sertão, das tradições pré-modernas, dos engenhos decadentes do litoral e das praias ensolaradas .


Surge o Mangue.


Com o Mangue, emergem representações da identidade cultural recifense que levam em conta a especificidade do Recife como espaço urbano pós-moderno caótico, conflituoso e miserável. Nelas, estão presentes tanto marcas da tradição pré-moderna, quanto dos fluxos simbólicos de alcance nacional e global que circulam por meio dos modernos aparatos de mídia. Em contraponto ao receituário armorial, que limita os procedimentos criativos e avalia os resultados artísticos de acordo com uma fórmula mais ou menos rígida, a proposta Mangue se abre para a pluralidade e acrescenta referências estéticas do pop a uma releitura não sacralizada do que era considerado tipicamente regional.


Embora o Mangue tenha gerado manifestações em vários gêneros artísticos, é a música a manifestação artística central em torno da qual gravitam as demais expressões desta proposta estética. O agenciamento, por esse grupo, de elementos da cultura pop no processo criativo é sintoma da consciência de que a construção de uma identidade cultural contemporânea está necessariamente atravessada por fluxos simbólicos de alcance global em conexão com o local; e que a articulação em rede, possibilitada pelas tecnologias de comunicação, é um dos canais privilegiados pelos quais circulam essas referências . Torna-se, portanto, essencial apoderar-se dessas tecnologias e apropriar-se dessas referências para incluir-se nesses fluxos, produzir novas representações da cidade e colocá-las em circulação, criando assim imagens alternativas do Recife, reposicionando-a no mapa simbólico da nação e, ao mesmo tempo, inserindo-a no contexto internacional de produção de signos pop. Recife, pensada como uma cidade-mundo, isto é, resgatando , como espaço de interação entre as forças globais e as culturas locais; nela se negocia a circulação em escala global de pessoas, de bens e tecnologias, de ideias, imagens e produtos culturais. Entretanto, a inclusão neste fluxo simbólico global ainda dependia de uma contribuição singular cuja marca distintiva seria a releitura do que havia de especificamente local numa linguagem pretensamente global. E essa ideia de especificidade se ancorava no conceito de cultura popular, com todas as contradições e disputas simbólicas a ele inerentes.


No início, a construção de uma imagem pública local para a música do Mangue dependeu, sobretudo, de estratégias de produção e divulgação tipicamente underground, como já visto. Em seguida, os eventos do Mangue passam a ocupar um espaço gradativamente maior nos jornais locais, especialmente no Jornal do Commercio, graças inicialmente a contatos e relações pessoais dos jornalistas com os agentes da cena Mangue . A partir de então, o Mangue não demorou a conquistar a simpatia dos grandes jornais brasileiros, das revistas de circulação nacional e demais instituições detentoras de mecanismos de legitimação simbólica no plano nacional e internacional. Neste aspecto, a postura dos agentes aglutinados em torno da ideia do Mangue é frontalmente oposta ao dito establishment armorial, para o qual a inclusão num circuito comercial de massa ou de nicho, ou mesmo a legitimação por instituições vinculadas a uma dinâmica de mercado, não constituíam preocupações centrais.


Quando Suassuna assume a Secretaria de Cultura do Estado, em 1995, a Cooperativa Cultural Mangue estava a pleno vapor, mas houve resistência do secretário em incluir essa proposta em sua política cultural. Havia, no entanto, pontos em comum entre ambos, que serviram de ponte para uma aproximação que viria a acontecer posteriormente, em 1997.


Com o Mangue legitimado pelas principais instâncias especializadas em música pop do país, o campo cultural da cidade já estava se reconfigurando, e o diálogo de Suassuna com Science era o sinal de uma negociação simbólica. Embora com diferenças em relação às formas de se relacionar com as culturas populares, tanto Science quanto Suassuna compartilhavam a ideia de que uma manifestação artística local para se globalizar deveria trazer marcas típicas daquilo que se entendia por cultura local. E, para ambos, a cultura local em sua tipicidade estava visceralmente ligada às manifestações culturais das camadas populares.


Diferentes apropriações do popular.


Enquanto Science e Fred 04 pendiam para uma visão mais inclusiva do conceito de cultura popular, aí englobando também manifestações urbanas como os tambores do Daruê Malungo ou o samba-rock de Jorge Ben, Suassuna estava mais voltado para as culturas rurais. Em relação à maneira como lidavam com a cultura popular, vale destacar a fala de Suassuna, em entrevista à Folha de São Paulo: Ao mesmo tempo, porém, Suassuna, em entrevista dada a Vandeck 3), propõe uma hibridação criativa entre arte popular e arte erudita, afirmando que "não existe distinção de qualidade" entre as duas. Colocar a cultura popular brasileira a dialogar com os clássicos gregos (como o faz em suas peças teatrais) e com a música erudita européia (presente no Movimento Armorial), para ele, não somente seria aceitável como "necessário" e "progressista"; mas ampliar esse diálogo abraçando a cultura pop, seria condenável, pois acabaria por deteriorar o popular. Na análise que faz da proposta de Chico Science, ele afirma que a fusão do rock e do pop com os ritmos populares nordestinos, ao invés de enriquecer, prejudicaria a cultura popular.


Para ele, Science e os mangueboys fazem uma domesticação da cultura popular. Afirma que "quando falo em tradição, as pessoas imaginam que é uma visão imobilizada do passado. Está errado. Temos de pegar o popular como ponto de partida para a criação de uma arte de vanguarda brasileira. É o que tento fazer" (apud .


Por outro lado, a maneira como Chico Science e os mangueboys se aproximam das manifestações ligadas à tradição e à cultura popular se dá de forma menos enquadrada e fechada, buscando incorporar suas criações e seus criadores na formação de redes de criação e divulgação conforme nos afirma , "sem copiálas, reproduzi-las com objetivos preservacionistas, muito menos queriam delas se apropriar para simples deleite pessoal". Isso também fica claro na fala de Fred 04:


Os mangueboys foram movidos por uma curiosidade natural. Queriam aprender com rabequeiros, coquistas, cirandeiros, o que não lhes foi ensinado nas escolas, nem entrava nas programações pasteurizadas das FMs. E mais: trazendo esses artistas para a ribalta com eles, dividindo shows, palcos de festivais." Chico Science (apud Moricone, 1996) confirma essa intenção: "Eu queria trabalhar com os ritmos regionais, [. ] com essa coisa brasileira de uma maneira universal, que se expandisse mais." Ou quando afirma que "nossa ideia não é acabar com o folclore e sim resgatar os ritmos regionais, envenená-los com a bagagem pop. Isso pode chamar a atenção das pessoas para os ritmos como eles são e criar interesse pelo folclore" (apud .


Dados compilados por Ana Carolina e Gláucia Peres da Silva nos permitem interessantes considerações a respeito de como a imprensa pernambucana, mais especificamente o Jornal do Commercio, interpreta a mobilização desencadeada pelo Mangue. Percebemos, em primeiro lugar, algumas discrepâncias entre o discurso construído pelos jornalistas e a fala dos agentes, o que resulta na consolidação de uma imagem pública que destoa, em alguns aspectos, das intenções destes. Entretanto, concordamos com Carolina Leão quando ela destaca a importância da relação dos agentes do Mangue com os jornalistas do caderno de cultura do JC (Caderno C) para a consolidação do que ela chama de "campo de música pop em Pernambuco".


De fato, o Caderno C é o primeiro suplemento cultural de um grande jornal recifense a dedicar espaço para eventos e crítica de cultura pop. Naquela primeira metade da década de 1990, foi instrumento fundamental para a legitimação do Mangue e construção de uma imagem pública para o movimento. Contudo, ainda segundo a autora, o Caderno C, apesar de se colocar claramente como defensor e promotor da estética Mangue, evita superdimensionar o conflito de gerações entre o Movimento Armorial e o Mangue. Já segundo Glaúcia Peres , há no jornalismo local uma tendência a considerar o Mangue uma estética fechada, materializada em sua forma mais típica na fusão musical realizada por Chico Science e Nação Zumbi, sendo esse um dos pontos que mais gera polêmica entre os jornalistas culturais locais e os agentes do Mangue. Enquanto os jornais locais estabelecem uma hierarquia entre as bandas, classificando-as segundo maior ou menor aproximação de uma suposta "fórmula" Mangue, os agentes da cena enfatizam a abertura do conceito e a sua irredutibilidade a fórmulas estéticas. Assim, os articuladores do movimento chamam a atenção para a simbologia do Mangue como sinônimo de fertilidade e diversidade, numa tentativa de criticar fórmulas definidoras que implicassem na necessária fusão dos tambores nativos com a música pop internacional nos moldes da Nação Zumbi.


Há uma clara dissonância entre dois conceitos de identidade postos aí: um enfatizando a ideia de homogeneidade, no caso os jornais locais, que tentam ancorar o conceito de Mangue em marcas estéticas bem definidas, e outro que se abre para a diversidade, em consonância com a proposta conceitual do grupo, que produz uma metáfora da cultura em analogia à biodiversidade do ecossistema mangue. A autora defende ainda que os grandes jornais do eixo Rio-São Paulo acabam por reproduzir essa mesma postura dos jornais locais.


Mangueboys e Armoriais: interconexões.


A concentração regional da produção de bens simbólicos se acentua na medida em que se desenvolve o aparato da indústria criativa nos anos 1970 e 1980. As metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo tornam-se os principais polos de produção de bens simbólicos do país, reunindo as grandes redes de televisão, editoras e gravadoras. O parco mercado existente nas demais metrópoles regionais se atrofia em direta proporção ao crescimento das grandes redes de TV e da consolidação das grandes gravadoras e distribuidoras sediadas no Sudeste. Nesta época, presenciamos a formação de um mercado interno de dimensão efetivamente nacional depois que as gravadoras, editoras e grandes redes de televisão passam a disseminar em escala nacional os bens culturais por elas produzidos. A infraestrutura montada e consolidada entre os anos 1960 e 1980, época em que vigorou a ditadura civil-militar, foi determinante para viabilizar esse projeto de unificação de um mercado consumidor nacional de bens simbólicos.


Nos termos de , podemos afirmar que começa a se estruturar, a partir de então, uma hierarquização do espaço geográfico no que diz respeito ao campo de produção desses bens. Em paralelo ao processo de modernização e de integração do país, que se adensa ao longo do século XX, São Paulo e Rio de Janeiro tornam-se os núcleos produtores e disseminadores dos valores econômicos e culturais, e sediam a maior parte das instâncias legitimadoras dos bens culturais em escala nacional. Dentro da nova lógica que se instala, até mesmo os signos de identidade regional passam necessariamente pelo crivo das instâncias de legitimação sediadas no Rio e em São Paulo antes de serem colocados nacionalmente em circulação e consumidos por brasileiros das mais diversas regiões.


No Recife, uma das primeiras mobilizações culturais a se dar conta dessa hierarquização e utilizá-la conscientemente a seu favor é o Mangue. Como brada Fred 04 na canção Destruindo a camada de ozônio, do CD Guentando a ôia : "Não espere nada do centro, se a periferia está morta. Pois o que era velho no norte, se torna novo no sul." Vemos objetivada nos versos a consciência de estar situado na periferia, mas também, ao mesmo tempo, a ideia de que esta posição aparentemente "desfavorável", semimarginal, pode, em algum momento, tornar-se uma vantagem no processo de legitimação. O periférico pode ser incorporado ao campo por representar o "novo", ou o "desconhecido", sendo, portanto, um dos vetores que impulsionam seu dinamismo. Essa consciência reflete a maturidade de quem conhece a dinâmica do campo cultural no qual se insere, bem como qual posição pode ocupar nele. Ao se autodenominar o "novo", Fred 04 elege como antagonista o Movimento Armorial e adota a oposição sistemática como estratégia de legitimação.


O debate cultural no Recife dos anos 1990 tem sido normalmente representado pelos jornais do eixo Rio-São Paulo como uma oposição binária entre dois polos irreconciliáveis: o Mangue e o Armorial. Essa construção simbólica ressalta as diferenças ao mesmo tempo em que oculta as semelhanças e as afiliações que relacionam um e outro movimento a uma conjuntura histórica e cultural comum.


Enquanto Fred 04 opunha-se sistematicamente ao Movimento Armorial, percebemos nas declarações de Chico Science um posicionamento mais maleável, que deixa entrever uma espécie de negociação simbólica. Segundo Fred 04, "a política cultural dominante em Recife sempre foi essa, de folclorizar, de estagnar ou então de cercar pelo erudito, como faz o Movimento Armorial. Ele se julga proprietário da cultura popular regional. Ninguém mais pode beber nessa fonte" (apud . Também em entrevista à Folha de São Paulo (apud , cita a canção O Africano e o Ariano (onde se pergunta em um de seus versos "mas é o ariano que ignora o africano ou é o africano que ignora o ariano?") afirmando que é uma homenagem a Chico Science, já então falecido, e busca mostrá-lo "como herdeiro de uma tradição, não como o cara que veio renegar, achincalhar ou emporcalhar a tradição. Os 'arianos', chamemos assim, só reconhecem a importância da cultura negra até certo ponto". E segue afirmando que: "Na UFPE, onde estudei, todos os professores eram armoriais, apocalípticos quanto à cultura de massa".


Já Chico Science adotava uma postura mais amistosa. O próprio Suassuna (apud Sá, 1997, p. 7) relata: "Chico Science foi me procurar. Tivemos uma conversa extraordinária. Ele me disse, 'Ariano, eu sou um armorial'". E ao final da mesma entrevista, afirma: "Chico Science, a meu ver, está em posição equivocada. Agora, eu digo isso com o maior cuidado, porque eu gosto dele demais", deixando entrever não somente discordâncias, mas certa admiração e aproximação. De acordo com , o afã de se legitimar no campo gera a crítica a quem já está estabelecido. A parte emergente busca sua afirmação por meio da demarcação de claras fronteiras entre a auto-representação e a representação do outro, hegemônico naquele momento.


Há, de fato, importantes diferenças de visão de mundo entre o Armorial e o Mangue, desde o próprio conceito do que é cultura até as formas de se relacionar com as representações das culturas populares. Há, entretanto, pontos de contato, negociações que também os conectam e que acabam sendo relegados ao segundo plano nas páginas dos jornais.


Se pudéssemos exemplificar a negociação simbólica entre os dois com uma manifestação estética comum, poderíamos citar a maneira como ambos se relacionam com a obra do Mestre Salustiano. Cultuado tanto por armoriais quanto por mangueboys, Mestre Salu, como era também conhecido, tornou-se uma referência pelo modo como vivenciava e ao mesmo tempo recriava os folguedos populares. Cavalomarinho, bumba-meu-boi, ciranda e maracatu rural eram alguns dos ingredientes simbólicos da alquimia realizada por ele. Nascido numa família pobre da Zona da Mata canavieira, Salu vivencia desde criança várias brincadeiras típicas da região, algumas das quais, como o cavalo-marinho ou o bumba-meu-boi, chegavam a durar noites inteiras com a participação intensa das comunidades rurais. Entretanto, as mudanças culturais provocadas pela influência dos meios de comunicação de massa no cotidiano daquelas comunidades -sobretudo a televisão -cria uma outra percepção de tempo e entretenimento. Em depoimento à pesquisadora Mariana , o artista conta que percebeu rapidamente que as pessoas não estavam mais dispostas a passar noites inteiras participando dos folguedos. Por isso, passou a criar espetáculos curtos nos quais condensava elementos dos mais diversos folguedos populares.


Mestre Salustiano foi contratado por Suassuna para ser seu assessor na Secretaria de Cultura, entre 1995-98. Os mangueboys também prestaram sua homenagem a Mestre Salu. A faixa instrumental Salustiano Song, um coco eletrizado instrumental, figura entre as faixas do primeiro CD de Chico Science e Nação Zumbi, Da lama ao caos. De fato, a destreza de Salu em combinar e fundir as referências estéticas que vivenciou desperta a admiração tanto de armoriais quanto de mangueboys.


Além disso, apesar das discrepâncias e debates entre protagonistas de ambos os movimentos, estimuladas, a nosso ver, por uma conjuntura na qual o campo cultural da cidade se reconfigurava, não temos evidências de que, no plano do consumo cultural, houvesse segmentações análogas como fronteiras ou oposições claramente estabelecidas entre o público de um ou de outro.


O próprio local que durante alguns anos foi considerado o epicentro da efervescência Mangue no Recife, o bar Soparia do Pina, era um espaço em torno do qual gravitavam públicos variados, desde fãs de heavy-metal até aficionados por música armorial ou folclórica; caracterizando-se exatamente pela convivência relativamente harmônica entre segmentos de público diversos. Não raro, era possível perceber o trânsito de indivíduos e grupos por subculturas diferentes e até mesmo antagônicas, sem que isso fosse interpretado como contradição. Esse tipo de sociabilidade permeada pela fruição de gêneros musicais e referências culturais distintas e aparentemente antagônicas, cria um ambiente cultural propício às combinações e fusões musicais realizadas pelos protagonistas do Mangue.


O mercado consumidor de cultura no Recife não é tão volumoso nem tão segmentado quanto o das grandes capitais do Sudeste. Esta segmentação relativamente incipiente facilitava as trocas e os intercâmbios entre diversas formas de subcultura assimiladas pelos agentes da cena alternativa da cidade. Desde a década de 1980, quando são inaugurados na cidade lojas de discos, bares e espaços culturais dedicados ao rock e seus subgêneros, subculturas tidas como mutuamente hostis, tais como o punk e o metal, por exemplo, convivem em relativa harmonia na cena recifense. Era muito comum músicos de bandas punk e hardcore tocarem em bandas de metal e viceversa. Talvez em função dos festivais de rock organizados na cidade serem obrigados, para se viabilizar em termos de público, a agregar bandas de diferentes subgêneros, o que não apenas punha constantemente várias subculturas em contato, mas criava uma consciência coletiva de que elas eram mutuamente dependentes para consolidar uma cena alternativa local . Mesmo nos anos 1990, o Abril Pro Rock, festival símbolo do Mangue, adotava uma política da diversidade, ao contemplar os diversos segmentos do público tido como alternativo no cenário local, chegando a incluir até mesmo grupos que se aproximavam em seus resultados estéticos da proposta armorial, como era o caso do Mestre Ambrósio.


Não é a toa que o som produzido por Chico Science e Nação Zumbi será considerado o mais representativo dessa cena cultural. A mistura de maracatu com hip-hop, rock n'roll, samba-reggae e hardcore, entre outros elementos, se mostrava a alegoria mais próxima da diversidade e da fusão constituída pelo ambiente cultural do Recife em sua época. Essa diversidade produzia um diálogo que propiciou a formação de uma cena cultural fértil e vigorosa. Uma cena que se alimentou muito mais das trocas e da diversidade do que propriamente das oposições estanques que muitas das leituras a respeito do contexto levam a crer. l.

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